sábado, novembro 23, 2024
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A desumanização do mundo

Dia desses encontrei com uma amiga que costumo ver pouco. Estava felicíssima porque montou um escritório em casa e agora quase não precisava mais ir para a empresa. A vida neste novo formato a permitia cozinhar, organizar a casa, fazer chamada de vídeo e visitar a tia doente. Sorria leve, com movimentos delicados de quem esbarrou com a paz pelo caminho.

Fui tomada pela inveja. Podem me achar ultrapassada e, sim, reconheço o quanto nossas possibilidades foram ampliadas nos últimos anos, mas a verdade é que cada vez que saio para caçar volto rígida, fechada. Já tentou ser dócil no trânsito das 18h de sexta-feira? Duvido desmarcar uma reunião de trabalho por estar com cólica e ser acolhida com naturalidade. A vida lá fora nos obrigou a sermos fortes na marra.

E vou mais longe. Creio que parte da desumanização do mundo – esse tanto faz pelo outro – e o crescimento da criminalidade aconteceu depois que as mães saíram de casa. Você pode estar pensando “Ah, tem o lado financeiro”. Tem sim. A forma de consumo mudou completamente nos últimos 20 anos. Comer um salgado na rua era um evento, supermercado uma vez ao mês de banho tomado como se fosse para a igreja e carro só para visitar parente nos domingos, porque, no resto dos dias, era a pé, fretado ou circular.

Hoje, só para ficar no lugar a criança precisa de celular, internet e algum canal por assinatura. Sinto que a gente já começa a gastar dinheiro quando abre o olho cedo, sem sequer ter descido da cama. Então, sim, a vida exige mais ganho. Porém, se não percebermos passamos a girar em torno do próprio rabo, como fazem os cachorros.

Fica menos em casa, tem menos tempo e disposição para cozinhar e compra pronto. Contrata alguém para passar roupa. Vai ao supermercado depois de um dia cansativo, compra todas as emoções oferecidas nas prateleiras que acabam influenciando na saúde e consequentemente em custo com médicos e medicamentos ou que vão para o lixo.

Se você se sente feliz com tudo isso, está tudo bem. Não é uma obrigação cuidar da casa, gostar de tarefas domésticas e executá-las. O ponto aqui é exatamente este: nem tudo é para todo mundo e não dá para medir sucesso fazendo o que todo mundo faz. Nunca o cuidar esteve tão desvalorizado, foi tão sinal de fraqueza.

Eu não tenho fórmula, não tenho nenhuma sugestão de intervenção e, digo mais, apanho diariamente para lidar com tudo isso. Se olhasse para mim sem ruído certamente escolheria fazer carinho nos meus gatos sem pressa pela manhã, aguar minhas plantas com periodicidade e sentar para comer bolo quente com a minha galera no café da tarde. Mas, imersa nesta nova sociedade, me rendo ao capitalismo, tanto pelo material quanto pelo sorriso tímido de vergonha que esboçarei pela fragilidade de não pertencer.

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