sábado, novembro 23, 2024
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Antes que as flores venham

Já vivi, e os cabelos brancos provam, muitas, quase inumeráveis passagens de uma estação para outra, a cada ano. Prestando atenção saca-se que a natureza veste-se de certa liturgia que, em geral, só os atentos percebem. Mesmo estando neste caso, sempre a navegar sobre coisas que já sei, parece que paira leve espanto no observar a repetição de eventos absolutamente naturais. Quando chegou agosto abri a janela do quarto, certa manhã, e notei, no jardim que me abriga nesta Chácara da Barra, que a viçosa goiabeira que me hospeda sob seus galhos, desfolhava.

Pouco depois, a caminhar na rua para pegar pão fresco, observo que as sibipirunas faziam o mesmo. Bons instantes para, novamente, meditar que nem sempre, pelo menos aqui no nosso hemisfério, é no outono que as folhas caem. Afinal estas, que poderiam despencar nas minhas mãos em concha, apenas resvalam pelo meu rosto. A repetir que as duas lindas espécies de árvores se preparavam, mais de mês antes, para receber a primavera.

De inúmeras maneiras um chão crivado de folhas mexe com nossa imaginação. E é sempre fatal que se observe os galhos que vão ficando nus. Pois é isso, ramagens quase sem folhas, que, no caso das sibipirunas e da minha íntima goiabeira, acabam por levar à sacrossanta conclusão: logo mais ressuscitarão em verde; ao despencar dos céus a primeira chuva da nova estação.

Que, sem dúvida, pontualmente chegou, ali pelo dia 20 de setembro, quando a mudança se fazia sentir no dobrar das brisas que passaram a contornar com certa faceirice as ruas que levam à Praça dos Pássaros, na parte mais alta do bairro. Lá há um grande refeitório, no qual os passarinhos se servem de generosas porções de amoras. Que, aliás, já fizeram minhas alegrias em primaveras d’antanho, pois então colhia as frutinhas para que as mãos santas de evanescente amiga compusesse, como se canções fossem, geleias de consistências meigas e doçuras francamente eclesiásticas, dignas do papa Francisco.

Ouvi que a chuva inaugural chegou ainda de madrugada. Os pingos, após bater no telhado, desceram pela calha até fazer com que o marulho, no chão, me acordasse. Imediatamente pensei que também, naquele justo instante, a goiabeira e as sibipirunas talvez já estivessem abrindo mais seus galhos, para que o borrifar do céu chamasse ao inicial canto da devolução das folhas.

Não sei se a natureza guarda precisões de relógios suíços, ou se é o contrário. O que sei é que bastou que o ar fosse umedecido para, à nascente luz da manhã, um longínquo sabiá-laranjeira, que andava escondido, dar o ar da sua graça. E depois, comigo já armado de guarda-chuva, avisto, sobre o muro coberto de heras, o sanhaço que de vez em quando aparece; citado em crônica neste espaço no começo do ano, mereceu até carta de  atento leitor a informar que, no bairro em que mora, tal espécie de emplumado é tão comum quanto pastel de feira. Gosto de contar isso…

E o efeito da infante água da nova estação que agora caminha com consistência e ternuras, logo se fez sentir de maneira ampla. Pois, no terceiro dia os primeiros brotos de folhas apareceram na goiabeira subitamente solene. Isso enquanto na calçada fronteira ao tugúrio as várias sibipirunas começavam a se cobrir de verde no alto, deixando cair as florezinhas amarelas, pepitas a cobrir a calçada.

Na volta do sol vi, a bicar troncos, um velho pica-pau que não abandona o pedaço durante certas horas da manhã; porém, à noite, quem espalha voos pelas densas madrugadas é um casal de corujas que mora num terreno público, à espera de virar pracinha, para os lados da Nazaré Paulista.

Da primavera em diante é comum que os ares da área sejam cortados não só pelo respeitável sanhaço e o não menos sabia-laranjeira, mas até por dois ágeis azulões que, como se sabe, vivem em casais que tomam conta de limitado espaço que só a eles pertence.

Agora meus olhos, que já não se perdem em cansaços e vivem lua de mel com a luz graças às mãos mágicas do oftalmologista João Alberto Holanda de Freitas, estão preparados. Para ver as primeiras flores na goiabeira que, em novembro, serão frutinhas mínimas que se abrirão em amplidão de amarelos de raros ouros nos primeiros meses do ano que vem. Aí sim, pleno verão, o sanhaço aparecerá todos os dias. O que até pode não ser importante para muita gente. Mas, pra mim, é.

Antonio Contente é jornalista e escritor

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