Vivemos numa “cultura de repúdio”. A frase, que não é minha, mas pertence a Roger Scruton dá bem o tom da forma como o Ocidente, cada vez mais e preocupantemente, esforça-se por repudiar seus valores estruturais, a começar pelos judaico-cristãos. Esse repúdio, ao fim, redundará num empobrecimento moral ou epistemológico, mas, antes, passará pelo empobrecimento estético, independentemente de qualquer influxo religioso.
Sem um contato vital e profundo com a tradição e os textos sacros, ficaremos cegos, surdos e mudos para uma boa compreensão de dois milênios de arte e de civilização. Como já acontece com a arte contemporânea. Simbolicamente, nesse campo, o ponto da virada, rumo à essa cultura de repúdio, foi o pinico do Duchamp: a arte desceu do nível dos ciprestes do Van Gogh, passou pelo dito pinico e foi parar no esgoto da frivolidade e da bizarrice do cotidiano. Antes parasse por aí. Mas não. A imaginação humana realmente não tem mais limites estéticos e qualquer coisa vira um ato de expressão artística.
Já comentei, certa vez, sobre a “profundidade estética” da exposição sobre orifícios anais que ocorreu em Paris há pouco tempo. Agora, talvez inspirado pelo “vanguardismo estético” da exposição parisiense, um universitário inglês promete perder a “virgindade anal” no meio de uma “performance artística”, cujo título do projeto é Art School stole my virginity (a Escola de Arte roubou minha virgindade).
Resumo da ópera: o sujeito, todo nu, assim como seu companheiro, vão se lambuzar de tinta colorida sobre uma tela em branco esticada no chão de uma galeria de arte, manter uma relação homossexual e o resultado dessa pornopopeia será exposta depois para o delírio e para os aplausos daqueles que reduzem a arte ao nível pedestre da cupidez, da vontade de poder e da prepotência sobre o outro.
Não vou entrar no argumento de fundo dessa manifestação provocativa: a destruição simbólica da virgindade da moral judaico-cristã. Apenas lamento informar ao jovem universitário que ele chegou com uns cinquenta anos de atraso para avocar qualquer tipo de ineditismo no assunto e que ele está sendo manipulado pela “agenda da cultura de gênero” no trabalho de “desconstrução da heteronormatividade”.
O fato que interessa aqui é a tal “loucura da arte” (Henry James), que pode ser resumida no clichê expressão/repressão, o qual domina grande parte das discussões analfabetas do nosso tempo. Como somos “herdeiros de uma sensibilidade romântica superada”, acredita-se, hoje, que a arte deve ser “autêntica” e que a “autenticidade” consiste em abrir as portas da alma (na prática, são dos porões), sair por aí oferecendo nossos “sentimentos” e “emoções” numa bandeja de prata e, por via dessa “catarse”, libertarmo-nos de nossas neuroses mais profundas.
Bem, isso está mais para terapia do que arte. Aliás, boa parte da arte moderna não passa de um amontoado de pinturas, esculturas e obras que refletem e concretizam uma espécie de “sessão artística de psicanálise”. Eliot já disse que a arte não é uma questão de expressão ou repressão, mas de disciplina e sublimação. A destruição da arte e a pouca relevância que ela tem dado na retratação da beleza é um claro sintoma de um problema que supera o estético e que envolve uma crise de existência humana.
Se a beleza salvará o mundo, como já alertou o papa João Paulo II, tenho pouca esperança neste século que se inicia. A beleza da arte não se confunde com a tela “colorida” e “viscosa” de nosso jovem “artista” inglês: uma superfície ”sexualmente” pigmentada pelas mais variadas cores e por muito sêmen masculino. Não admira que ele seja como os jovens anoréxicos que se olham no espelho e desatam a começar outra dieta em nome de umas calorias excedentes que não têm mais. Todos eles acreditam genuinamente na sua própria genuinidade. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito e coordenador do IFE-Campinas (agfernandes@tjsp.jus.br).