sábado, novembro 23, 2024

As duas pontas

Crianças e idosos são duas pontas da vida. Mas, o que eles têm em comum? Eu digo: a necessidade de uma rotina cujo centro sejam eles. Sim, é isso! São dois momentos que invariavelmente a disposição da casa e da rotina é afetada (pelo menos deveria ser) por necessidades específicas de quem não é capaz de se gerir.

A diferença é que ter uma criança é escolha, ter um idoso nem sempre, e se o novo traz descobertas cheias de dopamina, olhar nos olhos da velhice nos leva diretamente para o desconforto da nossa finitude.

Tenho transitado entre os dois lados. Desde que Catarina – nossa gata de olhos verdes e pelos pretos – chegou, as cadeiras e sofá ganharam capas antes de estamparem mais furinhos de unha e ninguém entra ou sai com o carro sem localizar onde ela está. Na hora de dormir tem um ritual e, pela manhã, quando já está cansada de ficar quieta, deita sobre nós como num pedido para acordarmos e nós o fazemos sorrindo.

Às vezes tudo que a gente queria era ficar mortão no sofá com o celular na mão, mas quando ela passa chamando para brincar não há quem resista. Rapidinho tem alguém apostando corrida pelo corredor ou amassando uma bolinha de papel. O mais engraçado é que fazer isso “reenergiza” e ver aquele rosto pequenininho, aquela carinha de quem para a vida só foi leve, faz toda dedicação ter sentido.

No contraponto, tenho minha avó, com 83 anos e sinais de demência. Quando olho para ela, luto para encontrar a vida que viveu ali dentro. A mulher forte, dinâmica e decidida que costurava roupas para minhas bonecas e fazia bolo quando minhas amigas iam brincar comigo.

Todos esses momentos incríveis são o suporte que faz com que tente responder a mesma pergunta exaustivamente, sem me irritar. Lembrar de quantas vezes adoeci e ela mudou toda a sua rotina para me socorrer é meu “stop” para respirar e não pirar de perambular de um médico a outro em busca de cuidados.

Mas isso tudo diz mais sobre mim do que sobre ela. Isso porque, cada vez que a procuro, eu me acho aqui: da criança à adulta, da que acordava com o almoço de domingo pronto e hoje tem que programar o que vai acontecer, da que era socorrida e hoje é o socorro.

Mostra que o tempo passou para ela, mas não menos implacável para mim. Aí cruzo com a Catarina, a vida ainda não vivida e rejuvenesço, afinal, para isso servem os ciclos: nos fazer transitar entre o que fomos, somos e ainda nos resta ser.

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