Nem sempre ganhando. Nem sempre perdendo. Mas, aprendendo a jogar. Esta é a nossa vida. E, convenhamos, como cantaria a rainha, viver é melhor que sonhar. A carreira da eterna Elis Regina nem foi a inspiração para os pais da nossa Elis dar a ela este nome. Apenas acharam bonito. Como de fato é. Mais bela ainda é a história desta mogimiriana que completou, no último dia 18 de fevereiro, 28 anos.
Menos que o tempo que a famosa Elis nos deixou. Mas, já com tempo suficiente para inspirar. Assim como aquela que para muitos é a maior cantora que já nasceu no Brasil. Elis Regina Franco conhece pouco de Elis Regina Carvalho Costa. Mas, conhece muito da vida. É destas mulheres com ‘M’ maiúsculo. E é mais humana e completa após um acidente que deixaria muitos sem sentido nenhum para viver.
A mogimiriana tinha 18 anos em 2010. Estava iniciando a faculdade de medicina veterinária. Possuía habilitação para motorista há 40 dias. Apenas começava em seu emprego, em que fazia de tudo, no Supermercado Dia. No dia 10 de setembro daquele ano, lhe foi confiado um fardo que nem ela imaginava ser capaz de carregar. Deixou a moto do lado de fora do mercado, voltou para fechar o portão e o mesmo caiu sobre ela.
Acordada o tempo todo e sem lesões expostas, ela clamava aos que imediatamente a socorreram que a deixasse ir embora. Ainda não sabia, mas sem sentir as pernas, estava, ali mesmo, com um divisor de águas marcado. “Minhas costas ardiam, doía muito. Mas, eu só queria ir embora”. A gravidade foi atestada pelos médicos que a atenderam na Santa Casa de Misericórdia.
No mesmo dia, cirurgias. Elis, porém, não entendia que a paraplegia se tornaria uma eterna companheira. “Me falavam que eu não ia mais andar e eu pensava que não tinha como, porque eu andava e, mesmo que demorasse, eu iria voltar”.
Aos poucos, a ficha caiu. Não foi fácil lidar com a mudança brusca. Seria o fundo do poço? Seria o fim do caminho? No rosto, nada de desgosto e sim a promessa de vida naquele coração. Em uma explicação simplista, Elis perdeu os movimentos do umbigo para baixo. O que ela não perdeu foi a vontade de viver. E de ser feliz.
Igual e melhor
Elis passou cerca de três anos encarando cirurgias. Fez fisioterapia. Fez adaptações. Ela sabe que possui necessidades especiais. Mas, convenhamos. Quem não precisa? Todos os humanos são limitados. Não há exceção. Ela também sabe que, na visão de muitos, não é bem assim. A deficiência física que é clara ao olho nu daquele que é despido de sensibilidade causa situações que sequer deveriam existir.
“A maioria das pessoas ajudam. Algumas, até exageram, só de ver um cadeirante já pega e até derruba. Mas, há ainda quem não tenha muito senso, que faça perguntas sem noção. E até lugares, lojas por exemplo, em que a pessoa já avisa que não tem acessibilidade e que não dá para entrar. E isso acontece bem mais do que a maioria imagina”. Este é um bom exemplo de deficiência. Daquelas em que a pessoa demora a perceber que tem. Ou morre sem saber.
Elis melhorou. A versão anterior era estourada. Hoje, a irritação é mais coletiva. Ela não esconde a indignação com a falta de sensibilidade para oferecer acessibilidade. Luta sempre que pode por melhores condições para todos que possuem a mesma condição que ela. E mais do que teorizar ou reclamar, ela faz. “Hoje eu me sinto uma pessoa melhor. Mais sensível aos problemas das outras pessoas”.
Não é algo forçado. Ela sequer gosta do rótulo de exemplo, muito pelo contrário. Mas, sabe que com a dificuldade humana de valorizar os pequenos gestos, a maneira como lida com algo que abateria muita gente se torna automaticamente uma inspiração.
“Antigamente, dentro de casa, tinha um degrau para entrar para a sala e ele não fazia diferença, só estava ali. Depois que sofri o acidente, eu simplesmente não conseguia superá-lo. Tomei banho de leito por um tempo e o que mais queria era de chuveiro. Algo que fazemos todo dia e que a gente não dá valor. Poder comer sozinha também. Apesar de que só de poder comer a gente já tem que dar valor, porque tem gente que nem pode. São coisas que são simples e quando passa por uma situação assim, não tem dinheiro no mundo que pague conseguir fazer estas coisas simples”.
O esporte e o halterofilismo como molas propulsoras
Nascida em Mogi Mirim, foi criada no bairro Maria Beatriz, na Zona Sul. Estou na Altair Polettini e fez cursos de idioma na adolescência. O que pouco fez foi esporte, algo que é automaticamente ligado a uma vida saudável e executado por quem está em sua plenitude física. Elis nunca foi uma esportista. Hoje, vai todos os dias à academia e tem até sonhos, digamos, olímpicos.
Logo após o acidente, ela passou a frequentar o Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília (DF), uma das principais referências em reabilitação motora. Lá iniciou a fase de aprendizados e reaprendizados. Soube como trocar a própria sonda sozinha. Ganhou a independência de tomar banho sem a ajuda de ninguém.
De trocar de roupa. Trocou de vida. Percebeu que o que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo. E que precisava rejuvenescer. Colocou o esporte na rotina, como as versões adaptadas do tênis de mesa, basquete e halterofilismo.
“No começo eu achava que não ia gostar. Disse, não quero. Vou ficar quieta em casa e, no final, foi muito legal. Estava junto com vários cadeirantes e aprendi muito”. Virou não só o auxílio na reabilitação, como também uma paixão. No retorno a Mogi Mirim, perdeu um pouco desta vivência.
Não saía mais com outros 15 cadeirantes e ia ao shopping ou ao metrô. Mas, passou a praticar esporte, anos depois, quando a sua cidade recebeu o Centro de Reabilitação Lucy Montoro. Lá, faz basquete de cadeira de rodas e outras atividades. Em uma academia da cidade, mantém a forma. Porém, a modalidade que hoje move Elis é o halterofilismo.
Até a pandemia mudar a rotina de tanta gente, ela treinava semanalmente no Centro de Referência e Desenvolvimento do Halterofilismo Paralímpico, em Itu. Lá, é comandada por Valdecir Lopes, técnico da seleção brasileira da categoria. Entre os dias 31 de janeiro e 2 de fevereiro deste ano, embarcou para a estreia em competições de alto rendimento.
Disputou a etapa regional Centro/Leste do Circuito Loterias Caixa e foi a terceira colocada em sua categoria. A menina que não praticava esportes, já pode dizer: agora eleva o nome de Mogi Mirim com a sua força. E não vê a hora da retomada acontecer.
Desafios não param: habilitada para dirigir ônibus
E não ouse dizer a Elis que ela não é capaz de algo. Os médicos diziam ser impossível qualquer movimento dos membros inferiores. Hoje, ainda que de forma tímida, ela mexe o pé direito. E fez de birra. “O médico disse que eu não ia conseguir, fui lá e consegui”, brincou. Mesmo que não seja de ‘brincar em serviço’. Dirige até ônibus. Enquanto muitos sofrem para conseguir a habilitação B, a qual ela tirou de letra, Elis foi além e hoje possui a chamada ‘Carta D’.
Tudo meio que começou com o médico dizendo que seria impossível. Ela nem tem ônibus ou atua na área. Mas, queria provar ser capaz. Como em Mogi não havia nenhuma auto escola com esta demanda, foi até São Paulo. Na única empresa do ramo que oferecia a chance de uma habilitação de ônibus adaptada, ela aprendeu, se superou e se tornou a primeira paraplégica brasileira com este status.
Ela nunca mais dirigiu, até porque não é todo mundo que tem um busão na garagem. Mas, quem tira dela a satisfação por mais uma superação? Elis não tem limites. Ela meteu o pé na estrada like a Rolling Stone. Com seu carro, tudo faz. Leva amigas e amigos a passear.
Não sabia que isso era possível, até que um homem, desconhecido até então, e com as mesmas limitações, deu a ela o caminho. Humana melhor como hoje é, fez o mesmo a quem pode. Manteve a corrente. Salvou sem saber. Sem nem querer, se tornou a inspiração de quem aqui conta a sua história. E que tem a missão de mostrar a todos que devemos ter mais de uma Elis Regina especial em nossa memória.