segunda-feira, abril 21, 2025
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Filho número um

O primogênito deveria ter terapia como direito adquirido desde o nascimento. Digamos que ele seja o rascunho, daqueles que a gente rabisca bastante, muda a ordem das palavras, diminui o número de linhas para depois passar o texto a limpo. Ele é o nosso teste, só que na prática.

Antes dele, só nos conhecíamos no papel de filhos, o que nos permitia fazer birra, nos sentir frágeis, dependentes. Éramos passarinho com o bico aberto só esperando pelo alimento. Passar para o outro lado exige muito mais discernimento, empatia e capacidade de resiliência. A questão é que, às vezes, isso passa longe de como tínhamos precisado ser até então.

Não é fácil perder aquela leveza inconsequente da vida, saber que, a partir de então, qualquer passo pode causar danos irreparáveis. E sim, as mudanças e amadurecimento acontecem o tempo todo, mas a chegada do primeiro herdeiro é uma espécie de avalanche que vai remexendo até as camadas mais profundas.

Dia desses estava numa roda de conversa e uma amiga disse com convicção que não era amada pelos pais. Quando perguntei por que, contou que lembrava que, desde cedo, eles foram agressivos nas atitudes e às vezes batiam nela com força e que até agora, com 40 anos, não tinha conexão com a mãe.

Veja bem, os pais desta minha amiga se separaram quando ela ainda era criança. Antes disso, eles viviam um relacionamento péssimo, não se entendiam como casal e ainda havia traição. Resumindo: a vida estava num momento ruim e pessoas feridas ferem.

Não tem conexão com não amar a filha e sim com duas pessoas que estavam sendo o seu pior, que estavam vestindo a fantasia de monstro, que estavam vivendo dias nebulosos. Sabe quando alguém ofende a gente na rua e chutamos o cachorro quando chegamos em casa? O sentido é o mesmo.

Diante disso podemos analisar duas situações. A primeira é que uma das coisas que mais machucam uma criança é a instabilidade, é se sentir desprotegida. Por isso, natural que essa minha amiga os veja desta forma.

A outra é que muito possivelmente, talvez até de forma inconsciente, o primeiro filho torna-se uma foto daquele momento ruim, aquela imagem que, quando a gente vê, o coração já lembra da dor.

E nada disso é culpa de ninguém. Não sabemos o que é casamento, dividir a vida com alguém, até estarmos casados. E, como no meu caso, que fiz isso grávida, tive que aprender a ser esposa e mãe concomitantemente.

E, verdade seja dita. Ao mesmo tempo que filho cria um vínculo eterno entre o casal, acaba com o casamento. Todo mundo fica mais cansado e aí começa a competição em reclamar sobre quem trabalha mais, quem dorme menos…

Voltando à minha amiga, quando expus minha análise, ela arregalou os olhos e os manteve fixos, olhando para o nada enquanto vasculhava sua história. Depois disso, fez uma respiração profunda, como quem tira um peso dos ombros.

Por Bárbara Andrade
Empresária, formada em Jornalismo, pós-graduanda em Psicologia e Coach, foi vice-presidente da Associação Civil Sanquim até 2019 e professora voluntária de Redação. [email protected]

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