O movimento dos caras cobertas de neurônio mole, músculos inflados e sede de desordem, agora, pode entrar no seleto grupo dos “movimentos sociais” que investem contra os pilares da ordem democrática nacional, a qual é balizada pelos princípios contidos no preâmbulo de nossa constituição-cidadã. Ao contabilizar seu primeiro cadáver, esses baderneiros mostraram a “cara” do movimento a que pertencem: anárquico e criminoso, tendo a imbecilidade como denominador comum.
Na gênese de movimento, um rol, igualmente seleto, de “pensadores de plantão”, composto por atores globais, âncoras de televisão, cantores consagrados, intelectuais, colunistas, profissionais do direito, congressistas e alguns revolucionários de fotografia fizeram coro único na defesa de um grupo que seria o paladino na luta contra a ordem burguesa, o capitalismo selvagem, o poder corruptor das grandes corporações e a violência policial. Nota-se que a orfandade de ideias do movimento só é superada pelo número de interessados no apadrinhamento adotivo…
O fato é que o mesmo grupo, formado por criminosos bem nascidos e anarquistas a soldo, levaram ao túmulo um trabalhador e pai de família e, como num passe de mágica, logo se descobriu que indivíduos que investem contra jornalistas, incendeiam carros de emissoras de televisão, depredam bens públicos, explodem agências bancárias, lançam artefatos explosivos contra os outros não merecem ser tratados apenas como criminosos, mas, diante do perfil de desajustados ideológicos, também como ofensores da democracia.
E não, como pretendem nossos “pensadores de plantão”, “como artistas de uma sensibilidade reprimida que desencadeiam uma série de manifestações estéticas contra o Estado”. Nada como uma embusteira manipulação semântica. Só que surgiu o primeiro cadáver, não dá para colocar na conta da polícia e, para piorar as coisas, é de um jornalista. E, agora, companheiro?
A atitude que alimenta o “modus operandi” desse movimento é pessimista, cínica e pode acabar com a democracia, transformando-a numa casca esvaziada de substância e valores, aquilo que os marxistas ridicularizavam com o título de “democracia formal”. É uma atitude que se traduz como descrença e apatia em relação à vida pública e pessimismo em relação às instituições.
Vargas Llosa recorda, com acerto, que, quando uma parcela considerável de uma sociedade devastada por essa inconsequente atitude sucumbe ao catastrofismo e à anomia cívica, o campo fica livre, como ensina a história política, para os lobos e para as hienas. E acrescento: também para alguns quadrúpedes mascarados e outros que posam de “maitres à penser”, endossando intelectualmente a ação daqueles.
Parece que tais “pensadores de plantão”, que gozam do privilégio de viver numa sociedade aberta e amparada por um Estado de direito, sentem um profundo tédio político, agem, como beneficiários da democracia, com um curioso desdém citadino, quando não com uma sistemática reflexão hostil. Para esses últimos, recomendo vivamente uma estada em Cuba ou na Venezuela. Se souber falar coreano ou persa, sugiro aventurar-se do outro lado do planeta ou ficar pelo meio do caminho…
Não me oponho às críticas que são feitas à democracia e ao Estado de direito. Há muito a ser feito e melhorado. Apenas lamento que o façam tomando o partido de quem quer destruí-las e substituí-las por modelos inspirados em regimes autoritários ou que, ao menos, atentem contra as bases orgânicas da democracia, cuja violência, sem dúvida, não faz parte. Arendt tinha razão: poder democrático e violência são opostos; onde um reina absoluto, o outro está ausente.
Lembro aos mesmos “pensadores de plantão” que a traição à democracia não é à princípios abstratos, mas à milhões de pessoas de carne e osso que, nos regimes autoritários, resistem, lutam e morrem em nome da liberdade. Salvo se nossos “pensadores de plantão” agiram, no passado, por puro oportunismo profissional ou por gestos e atrevimentos de circunstância, o que demonstraria, por outro lado, que os pensadores de nosso tempo tornaram-se muitos baratos e um tanto descartáveis…
Coube a uma moça com apelido de fada puxar o fio da meada da traição intelectual. Enfiou os pés pela língua e deu nome aos bois que, como Sininho, fazem parte do Reino da Terra do Nunca, onde os seres inconsequentes nunca são punidos. Ao cabo, são todos uns grandes garotos perdidos e sem noção do que significam os valores do preâmbulo constitucional.
E, ao estudante que tiver dificuldade em fechar as contas no mês, fica a dica: participe de alguma manifestação do partido socialista que diz defender a liberdade mas que, na prática, prefere patrulhar a liberdade alheia. Com respeito à divergência, salvo se oriunda dos intelectuais traidores, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito e coordenador do IFE-Campinas ([email protected]).