sábado, novembro 23, 2024
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Goiabada com queijo

Minha Cidinha se foi. Me sinto órfã, convivendo com um buraco negro sobre meus ombros, como se temporariamente estivesse desalmada. Pensando bem, é isso. O cordão que nos entrelaçava fora cortado, agora apenas eu existo e caminho com um vazio ao lado. Sabe quando você tem uma foto com o ex-namorado, gosta dela, mas não gosta dele e recorta? É isso!

Eu nunca existi sem ela. Em 39 anos, todas as minhas lembranças, de uma forma ou de outra, passam por aquele ser. Não há nada que pense sobre minha história que ela não tenha estado, mesmo depois dos 13 anos, quando fui morar com minha mãe, nem que fosse apenas na conversa, sentadas na área.

Ah, essa área! Quando criança, quantas vezes passei horas deitada olhando o céu, as nuvens se movimentarem (gosto disso até hoje) com a tranquilidade de quem se sente em casa. Teve pinhão, laranja doce, ping pong improvisado, roupa passada e franja cortada. Teve almoço para minhas amigas, meu namorado, chá de bebê, batizado dos filhos e banho na bacia de amassar pão.

Como todos, Cidinha tinha suas sombras: me manipulava, me ensinou a ter medo, falava das pessoas de um jeito ruim. Mas nada, nada era mais forte nela que seu amor por mim. Sentia isso em cada laranja descascada, cada vez que estávamos ao telefone e ela não queira desligar e nas vezes que parava de falar quando via que tinha me deixado brava, para que não brigássemos.

Já caímos na porta da igreja, já convencemos o médico a nos deixar ir tomar Coca Cola no carro enquanto esperávamos o resultado do exame, tomamos chuva só para ir comer mistão e vestimos a saia como vestido, com a alça de pendurar no cabide. E a gente ria.

Sempre achei horrível pessoas que choram alto em velório, mas eis que chegou minha vez. Aquele barulho todo era desespero, um sentimento avassalador de quem nunca mais vai poder tocar a pele. Nunca senti nada parecido com o que percorreu meu corpo na hora de reconhecê-la no caixão.

E Deus mais uma vez foi muito generoso comigo. Não podíamos ter vivido um processo de partida mais lindo. Ela já não enxergava, escutava apenas de um ouvido, nos últimos dias perdeu a capacidade de engolir sólidos e controlar o xixi. Por tudo isso, nem por um minuto tenho rancor da morte, sofro apenas a ruptura. Diariamente luto com a vontade de passar o dia sentada ao lado de seu túmulo, como se ali ainda pudéssemos estar juntas.

Um pouco antes dela partir, tive um sonho lindo que, por pior que soe, foi confortante, como uma brisa leve. Nós estávamos em um banco quando ele foi invadido por assaltantes. Num determinado momento eles começaram a escolher os reféns que seriam mortos e Cidinha estava entre eles. Na mesma hora comecei a argumentar, na esperança de convencê-los a desistir. E foi assim que soltei um “Você não pode fazer isso com a gente, nós somos como goiabada com queijo, ficamos melhor se estivermos juntas”. Acho que é isso!

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