Muitas guerras externas foram travadas por vários motivos: expansão territorial, agressão injusta, fuga de rainha com o filho do rei inimigo, assassinato de arquiduque, desavenças familiares e usurpação de poder político. Enfim, a lista é longa. E muitas guerras internas também podem surgir no debate social sobre assuntos polêmicos. Com sangue, como a Guerra Civil americana, ou sem seu derramamento.
Nesse último caso, pode ser, inclusive, por causa da “prostituta nossa de cada dia”, como pude ler num cartaz sobre o debate francês sobre a repressão da prostituição naquele país, encabeçada pelo feminismo da titular da pasta ministerial dos direitos das mulheres contra a postura libertária dos usuários (homens, leia-se) dos “serviços sexuais dessas profissionais”. Uma verdadeira guerra dos sexos. E por sexo. Pago, é claro.
De um lado, argumenta-se que a prostituição alimenta o tráfico de mulheres, coloca-as em situação de servidão existencial e de vulnerabilidade legal, provoca a descartabilidade dos vínculos sociais e precipita estas mulheres para uma constante situação em que seus corpos são dispostos ao bel prazer da lascívia masculina. Sem dúvida, um libelo bem ponderado, confirmado por inúmeros fatos e recheado de nobres motivações. Por isso, segundo a ministra, o negócio é multar quem compra o sexo alheio.
Do outro lado, estão o conjunto dos homens da sedução a soldo – conhecido como o grupo dos “343 bastardos” – e, por mais paradoxal que pareça, o sindicato das “profissionais do sexo”. Ambos alegam que estão sendo tratados como crianças mimadas e, como todos ali são maiores e capazes, podem, sozinhos, muito bem tratar sobre a prestação de “serviços sexuais” sem qualquer interferência estatal, já que, no limite, exercem sua liberdade sem provocar danos a outros. Dizem que “todos têm o direito de vender livremente seus encantos gostando disso”, e que “não querem legisladores prescrevendo normas que limitem os desejos e os prazeres”.
Mencionando os três pilares da sociedade francesa – liberdade, igualdade, fraternidade – “os clientes e as fornecedoras” qualificam seus esforços para preservar o direito de pagar por sexo como uma luta pela preservação da liberdade civil: “Não defendemos a prostituição. Defendemos a liberdade!”, diz um cartaz intelectualmente mais elaborado e respaldado numa inequívoca dimensão humana. Só faltou acrescentar: “Viva a França!”.
Faço algumas ponderações. A sexualidade não é uma simples realidade físico-biológico-mecanicista. Ficar nesse nível impede um conhecimento em profundidade da sexualidade humana, ainda que isso seja muito útil e indispensável, porque muitas questões sexuais foram mal compreendidas em razão da ignorância do dinamismo próprio do aspecto natural da função sexual. Mas o sexo não se resume ao ser da pessoa. Está vinculado à sua totalidade, ou seja, abrange também o dever ser da mesma pessoa.
Outra ponderação. A visão moderna da ética é a de uma ética que torna o agir social um conjunto arbitrário e antipático de obrigações e proibições. Nessa visão, o dever aparece como algo oposto ao prazer, quando o cumprimento do dever, visto sob o ângulo clássico, comportaria uma dose apropriada de prazer.
Última ponderação. A liberdade não se confunde com o fazer o que se quer, sem qualquer limite, o que mais caracteriza uma postura libertária. Ser livre não é apenas ter a possibilidade de escolher, mas de escolher bem, tendo em vista os valores que realizam efetivamente o homem. Nesse sentido, ao se escolher por isso, eu, necessariamente, excluo aquilo. Quando escolho essa profissão, descarto as demais. Quando elejo esta mulher para ser minha esposa, rejeito as demais.
“Não toquem em minha prostituta!”, dispõe outro cartaz do grupo dos “343 bastardos”, como, talvez, diria um rufião numa abordagem policial em sua área de atuação. “Multa neles!”, responde a ministra, como se isso fosse resolver um problema afeto mais à virtude que propriamente à república.
Nesse debate, nota-se um misto de imprudência legislativa com permissividade moral. De normativismo antipático com emasculação libertária. De feminismo político com precificação da dignidade humana. Em suma, de muita liberdade e de igualdade. E de pouca fraternidade, porque, ao se ignorar o bem de todos e de cada um, oprime-se o outro em proveito próprio e, ao oprimi-lo, o opressor degrada-se e acaba por oprimir sua própria natureza. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito e coordenador do IFE-Campinas (agfernandes@tjsp.jus.br).