Um dos textos mais conhecidos do evangelho cristão é aquele em que Jesus se dirige a uma turma prestes a apedrejar uma prostituta, e lhes diz: quem não tiver pecado que atire a primeira pedra. A lição, que deveria ser óbvia, é a de que somos todos imperfeitos, e portanto incapazes de fazer julgamentos sobre os outros. A narrativa bíblica confirma que os envolvidos no episódio captaram a mensagem, já que se retiraram um a um, deixando a cena do quase-linchamento.
O episódio envolvendo a torcedora gremista, Patrícia, e o goleiro do Santos, Aranha, é a prova de que nossa sociedade está profundamente adoecida. Não seria correto defender a atitude da torcedora, já que ela estava errada. Houve o xingamento, o xingamento foi racista, e a coisa toda foi gravada. Mas a sequência de fatos deflagrados por esse acontecimento pontual tomou proporções irracionais e absurdas, envolvendo desde pessoas comuns até entidades como o STJD, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva.
O código penal brasileiro prevê penalidades proporcionais para cada tipo de crime, aplicáveis apenas através do poder judiciário. Ele, portanto, veta o linchamento, ato que é criminoso e também passível de punição. Ora, se a torcedora ofendeu o goleiro, se foi configurado ato racista por parte dela, que sejam tomadas as ações judiciais cabíveis. Além disso, seria de se esperar que ela perdesse alguns colegas, até mesmo algum amigo, e que sofresse algum revés profissional por conta de seu comportamento. Tudo isso seria normal e previsível.
O que não é normal, e nem aceitável, é uma reação absolutamente desproporcional e insana contra a gremista. Ameaças de morte, apedrejamento de sua residência, perseguição, terror – tudo o que não se faz nem aos piores assassinos, se fez com a referida torcedora. Os “justos” não só atiraram a primeira pedra, como também a segunda, a terceira, e mais um caminhão delas. A sabedoria, a maturidade e a sensatez deram lugar a um comportamento animalesco, desonroso e hipócrita.
Não é difícil imaginar que entre os acusadores de Patrícia haja canalhas, mentirosos, racistas, golpistas e ladrões, gente que talvez tenha desgraçado muito mais vidas, sem jamais ter recebido uma pedrada de reprimenda. Muitos o devem ter feito em oculto, e um bom tanto deles com certeza já usou a mesma palavra, “macaco”, para se referir a algum outro esportista negro de um time rival. Mas nesse momento todos se acham melhores do que ela, porque suas falhas não foram pegas por uma câmera, e nem espalhadas pelas redes sociais.
Para completar a loucura que se instalou no Brasil, o STJD resolveu punir um time inteiro e seus milhões de torcedores por causa da falha de uma pessoa. Todo pai ou mãe sabe que a pior coisa que se pode fazer é colocar os dois filhos de castigo por causa das travessuras de um deles. Assim como os méritos têm de ser reconhecidos individualmente, as punições devem atingir somente os autores dos delitos. Só assim se desenvolve a noção de responsabilidade.
A coletivização da sociedade é uma desgraça que mata os talentos, impede o amadurecimento das pessoas, e não faz nada além de criar sub-cidadãos tutelados por um estado cada vez mais gigantesco e patronal.
Quem assiste à sociedade brasileira de hoje assiste a um misto de terror com ficção. Os brasileiros convivem com sessenta mil mortes violentas por ano como se fosse algo normal, mas revoltam-se com um xingamento acontecido dentro de um estádio de futebol, no meio de um jogo onde o juiz, sozinho, é mais xingado em noventa minutos do que muitos de nós numa vida inteira. É uma sociedade que aceita a desonestidade e abraça a malandragem, ao mesmo tempo que condena a virtude e ridiculariza o honesto.
É o lugar onde os criminosos são tratados como vítimas, e as vítimas como opressoras. A inversão de valores é tão brutal que os parâmetros e padrões já não codificam mais nada na mente das pessoas. Estamos colhendo os frutos de décadas de plantio de relativismo moral e de sucateamento da intelectualidade.
O Brasil precisa de pessoas extraordinárias, e não de massas ordinárias. Precisa de indivíduos bem educados, e não de grupos inflamados. Menos “justos”, e mais justiça. E quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra.
Flavio Quintela é bacharel em Engenharia Elétrica, escritor, tradutor de obras sobre política, filosofia e história, e membro do IFE Campinas. É o autor do livro “Mentiram (e muito) para mim”. ([email protected])