Às vezes, tenho a impressão de que festa com data marcada começa e não vira nada. Quem sabe vem daí a razão do provérbio popular, segundo o qual o melhor da festa é esperar por ela. De fato, a véspera deixa a imaginação fora de si. Depois, surge a dura realidade e que fica sempre aquém do estratosférico horizonte criado pela imaginação alada. Para o mundo imaterial dos sonhos, vale a máxima do mundo mais aqui embaixo da gulodice: os olhos são maiores que a barriga. Principalmente na ceia de ano novo, seguida, fastidiosamente, do almoço em prol da mesma causa.
Mais um ano se passou. Pensamos e não fizemos. Fizemos sem pensar. Pensamos demais e fizemos de menos. Ou, ainda, nem pensamos e nem fizemos. Enfim, cada um que se curve e reflita sobre a vida que levou no ano passado. E uma boa forma de começar nosso exame pode ser, simplesmente, agradecer. Sim, um espírito de gratidão é capaz de dar outro sentido à nossa vida.
A gratidão, esse sentimento puro e desinteressado, faz com que o homem converta-se a si mesmo em devedor daquele de quem se recebe um dom. É uma intensificação da justiça, porque busca afirmar ao outro pagando-lhe amorosamente o devido a ele. Haver recebido põe o homem frente à justa obrigação de devolver ao menos uma parte do dom recebido. Muitas vezes este dever se vive, mais radicalmente, como ato prazeroso e espontâneo de agradecimento.
Nota-se, assim, que a gratidão tem uma dimensão social, ética e estética. Nas mais variadas formas, ponto que deixo ao exclusivo gosto do leitor. Há agradecimentos polidos (“Fico-lhe obrigado por tanta gentileza”) e não polidos (“Valeu!”). Agradecimentos masculinos (“Obrigado!”), femininos (“Obrigada!”) e politicamente corretos (“Obrigadx!”). Agradecimentos elegantes (“Estou ternamente agradecido!”) e comuns (“Agradeço a você!”). Agradecimentos antigos (“É alta a mercê que me fazes!”), modernos (“Obrigado!”), pós-modernos (“Obrigado eu!” e, na forma descortês, “Obrigado você!”) e virtuais (“#obrigadooogalera!”). Agradecimentos curtos (“Grato!”) e longos (“Muitíssimo obrigado!”).
Por falar em forma, para além de um certo formalismo vazio (bem ao gosto kantiano) que o cotidiano tende a arremessá-las, todas essas expressões, à primeira vista, tão inofensivas, incidem, originariamente, sobre aquelas importantes dimensões de nossa existência e, muitas vezes, mostram-se autênticas mensagens cifradas, por vezes infinitamente sutis, surpreendentes e sábias, como sempre nos ensinaram a prosa, a poesia, a filosofia, mas, sobretudo, a linguagem (etimologia e semântica).
Sob esse ângulo, o dinamismo da linguagem pode minar o sentido mais profundo do “obrigado” que, como outras expressões do cotidiano, é depositário da destilação das grandes experiências esquecidas. E se quisermos resgatar aquele sentido que elas encerram, devemos voltar-nos, criticamente, para esse depósito. Sob certa forma, é uma espécie de eterno retorno…nem que seja ao dicionário, responsável por detectar e registrar tais sentidos.
Louvo a atenção do leitor neste último ano: deixo aqui meus agradecimentos polidos, não polidos, masculinos, femininos, politicamente corretos, elegantes, comuns, antigos, modernos, pós-modernos, virtuais, curtos e longos. Este agradecimento, como epílogo de 2013, serve, também, como prólogo de 2014. Acabo por aqui, porque estou percebendo que o agradecimento está ficando maior que o espaço costumeiramente destinado à coluna e, de maneira pouco grata, pretendendo conquistar a autonomia de uma página inteira deste jornal. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito e coordenador do IFE CAMPINAS (agfernandes@tjsp.jus.br).