sexta-feira, novembro 22, 2024
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Ódio à democracia

É o nome do livro de Jacques Rancière, publicado este ano pela Boitempo. O autor é um dos filósofos mais importantes da atualidade e nasceu em Argel em 1940, discípulo do marxista Louis Althusser. Seu ponto de partida é a balbúrdia contemporânea, em que as manifestações viram espetáculos deprimentes, ninguém mais acredita em político, a escola não consegue atrair e segurar o estudante e os pais não obtêm disciplina em casa. Tudo isso tem uma causa: “Ela se chama democracia, isto é, o reino dos desejos ilimitados dos indivíduos da sociedade de massa moderna”.

O que acaba com o ideal da democracia é exatamente o excesso de democracia pragmática. Um regime que propõe exaurir a fruição de direitos, sem qualquer contraprestação. O paroxismo no discurso dos direitos do homem converteu-os nos direitos dos indivíduos egoístas almejando ingressar e permanecer na sociedade burguesa.

Pode-se substituir a expressão “indivíduos egoístas” por “consumidores ávidos”. A exigência febril de igualdade arruína a busca do bem comum, finalidade do Estado. Rancière cita uma conterrânea sua, Dominique Schnapper, que escreveu “A Democracia Providencial”, para descrever a situação presente. Todos querendo tudo, ninguém trabalhando para conseguir nada. E o que é a “Democracia Providencial”? É o estado de coisas em que “as relações entre o médico e o paciente, o advogado e o cliente, o padre e o crente, o professor e o aluno, o trabalhador e o assistido amoldam-se cada vez mais ao modelo das relações contratuais entre indivíduos iguais, ao modelo das relações fundamentalmente igualitárias que se estabelecem entre um prestador de serviços e seu cliente”. Aos poucos, tudo se banaliza, se trivializa e qualquer profissão perde sua transcendência. Que o digam os médicos, os sacerdotes e os juízes.

O pior espaço para essa patologia é o da escola. Ali, “não há mais lugar para nenhum tipo de transcendência, é o indivíduo que é erigido em valor absoluto e, se alguma coisa de sagrado persiste, é ainda a santificação do indivíduo, por meio dos direitos humanos e da democracia. Eis, portanto, por que a autoridade do professor está arruinada: por essa priorização da igualdade, ele não é mais do que um trabalhador comum, que se encontra diante de usuários e é levado a discutir de igual para igual com o aluno, que acaba por se instalar como juiz de seu mestre”. É a leitura de Jean-Louis Thiriet, no artigo “A escola doente de igualdade”, citada por Rancière.

Tais observações fazem pensar. Não é diferente a condição do médico em relação ao paciente, a do sacerdote – ou pastor – diante do fiel, a do juiz perante quem procura resolver todos os seus problemas junto ao equipamento estatal sobrecarregado, burocratizado e à beira de um colapso, chamado Judiciário.

Aqueles que têm responsabilidade, não perderam a lucidez e a capacidade de indignação têm de se articular. Ou as eleições são suficientes para resolver, milagrosamente, tudo isso?

José Renato Nalini é presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo   

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