O esporte na vida de Mirlene Picin, hoje aos 38 anos, foi se desenhando de forma sinuosa e despretensiosa até se tornar um ofício levado com senso de profissionalismo, somado ao talento, responsável por resultar, por ironia do destino, em um sucesso capaz de aprisioná-la e dificultar o avançar de sua trajetória esportiva. Com carência de recursos de patrocinadores e de apoio da própria organização do esporte de neve brasileiro, a esquiadora decidiu dar um tempo nas competições e tem o futuro em aberto.
Abalada pela impossibilidade de disputar o Mundial de Ski Nórdico, de 2019, pela falta de apoio, Mirlene voltou às pressas da Europa, onde faria a temporada de neve, e tenta descansar a mente, na medida do possível, para definir os próximos passos no esporte e na vida.

Multiesportiva, Mirlene é esquiadora e, recentemente, se especializou em corridas de montanha. Adora desafios a ponto de ter disputado uma série de competições na Espanha, considerado o palco mais concorrido das provas de montanha, e colecionou conquistas. Tanta evolução deixou Mirlene desmotivada para provas, hoje, pouco atrativas. Assim, se vê em um momento em que para continuar sem apoio, teria que dar passos atrás e aceitar provas em que a vitória é praticamente certa.
O problema existe porque Mirlene percebeu, pela falta de apoio e incompatibilidade de linha de raciocínio com o trabalho de esporte de neve do Brasil, poucos horizontes para disputar os Jogos Olímpicos de Inverno em 2022.

Depois de não ter conseguido vaga nos ciclos olímpicos de 2014 e 2018, mesmo tendo obtido os índices, percebeu que seria em vão fazer mais um ciclo. Sem os Jogos e o Mundial, restaria o Sul-Americano, algo em que a atleta acumula 26 medalhas no Biatlhon e um bicampeonato no Ski Cross Country. A motivação para o ski caiu. A opção seria focar nas corridas de montanha, mas teria que ter um apoio financeiro para se manter na Europa, onde há as provas de ponta. Hoje, tem várias parcerias e o apoio financeiro da Visafértil, mas precisa mais. Prisioneira do sucesso e minada pela carência de estrutura, ela se vê diante da necessidade de decidir o futuro.
Sem arrependimentos: atleta conheceu 26 países
Uma das maiores tristezas de Mirlene é a consciência de que poderia ir mais longe com uma melhor estrutura: “Fui a 5 Mundiais, conheci 26 países, falo 3 idiomas, conheci métodos de treinamento dos mais variados, do russo ao americano, estive em Centros de Treinamento que eu nunca ia imaginar, de atleta deficiente proveniente de guerra na Ucrânia. Eu faria tudo novamente, vale a pena, mas é ruim ver que tenho condições de ir muito além e não vou por questão de estrutura. Não faz sentido seguir assim, eu consegui até demais com a estrutura que tenho”.
A decisão de dar uma pausa no esporte não tem relação com idade, aspectos físicos ou sacrifícios. Isso porque Mirlene projetava competir no mínimo até os 45 anos e não sofre com lesões ou problemas de saúde. Além disso, não sente falta de se abster de alimentações desregradas, baladas ou bebidas alcoólicas, pois não aprecia este estilo de vida. Independente do esporte, aprecia uma alimentação saudável. Um dos únicos sacrifícios é estar longe da família em ocasiões como Natal e de virada do ano, quando costuma estar competindo ou treinando.

Por outro lado, após acumular cultura em diferentes países, não se enxerga residindo no Brasil. Está buscando cidadania italiana, pois vislumbra residir e trabalhar na Europa. Em termos de futuro, não se imagina atuando com Publicidade e Propaganda, o que ainda faz como free lancer. Mirlene nunca deixou de trabalhar na área, por necessidade. Além da rotina de atleta e do trabalho como publicitária, faz a própria assessoria de imprensa e busca patrocinadores. Por outro lado, também se formou em Educação Física e, é nessa área, que vislumbra um futuro até pelo nome construído no esporte. Mirlene poderia atuar como personal trainer ou técnica. Entre as ideias, está atuar com esporte paralímpico, idosos ou crianças. Em princípio, não mira o esporte de alto rendimento.
Mirlene não sabe por quanto tempo irá parar. “Estou dando uma parada para respirar, ver caminhos, se vale a pena continuar. E preciso fazer dinheiro, a vida exige e não faço com o esporte”, explicou a atleta que, em meio a múltiplas ideias, também tenta encontrar opções para financiar um retorno à atuação esportiva.
Enquanto dá um tempo, até por seu corpo estar habituado ao esporte, ela treina na cidade. “Até por saúde, para não parar de repente. Senão, dá nó no corpo. Não vou seguir treinando como se fosse pro Mundial. Vocês vão me ver na academia, na rua correndo, andando de roller ski”, contou.
Futebol, o esporte em que Mirlene considera ter sido melhor
A carreira de Mirlene envolve diversos esportes, como corridas de rua e montanha, a patinação e o ski. Os resultados como esquiadora já fizeram Mirlene ganhar, em 2010 e 2011, o Prêmio Brasil Olímpico como melhor atleta do Brasil dos desportos na neve. Na patinação, foi vice-campeã brasileira e, na corrida, acumula conquistas internacionais. Seu primeiro esporte praticado, porém, é, surpreendentemente, o em que considera ter mais talento: o futebol. “Foi o que eu melhor fiz, essa é verdade”, resume.
Na adolescência, Mirlene foi um dos destaques do time feminino do Davoli como ponta-direita de habilidade, no Campeonato Paulista, onde enfrentou Formiga, e chegou a receber uma proposta da Portuguesa. “Lembro até hoje, era um salário na época de R$ 200 e eu tinha que morar no alojamento”, recorda.

A proposta foi recusada por fatores extracampo. “O que me tirou do futebol é que eu sempre odiei o ambiente. Não gosto da cultura do futebol, não gostava do clima das meninas, jogava porque adorava o esporte, mas era deslocada, não me encaixava de jeito nenhum”, revelou.
De 1998 a 2001, Mirlene fez faculdade de Publicidade e Propaganda. Anos depois de abandonar o futebol em que considerava ter um futuro promissor, começou a fazer patinação como hobby, mas começou a se destacar, despertando a vontade de competir. Disputou a primeira competição na patinação radical em 2004 e na de velocidade em 2005, quando começou a almejar esporte de alto rendimento. “O esporte começou a remoer meus pensamentos de novo quando comecei a ficar muito trancada em uma agência de publicidade. Eu me questionava a toda hora, o que eu estou fazendo aqui?”, recorda.

O principal resultado de Mirlene no patins foi entre 2005 e 2006, quando foi vice-campeã paulista e brasileira de patinação de velocidade, o que a deixou apta a integrar a seleção brasileira nos Jogos Pan-Americanos de 2007. Porém, não foi convocada.
Depois, por impossibilidade de continuar competindo em alto nível por falta de incentivo e, em função de questões burocráticas, de aderir a um programa de patinação no gelo no exterior, não prosseguiu, mas soube, por acaso, que estavam sendo selecionadas mulheres para a seleção de ski. Então, realizou um teste e acabou levando vantagem sobre as concorrentes. “Eu nunca tinha colocado um roller ski no pé, mas quando eu vi e coloquei, era próximo ao patins. E foi por isso que eu sobressaí. O patins me fez chegar ao ski. É meio que obra do acaso, porque eu nunca buscaria o ski se a porta não tivesse sido fechada no patins”, comentou. “Eu agarrei como oportunidade da vida para sair da agência que eu não aguentava mais ficar trancada”, contou, entre risos.
Quando questionada sobre a ordem dos esportes em que considera ser melhor depois do futebol, coloca a corrida de montanha em segundo, o ski em terceiro e a patinação em quarto, apesar de considerar ter tido um bom desempenho como patinadora.