Nesta semana, ganhou destaque nos noticiários nacionais uma portaria do Ministério do Trabalho com algumas considerações acerca da fiscalização e do procedimento necessário à apuração de casos de trabalho escravo pelos fiscais do Governo. Na prática, é quase inequívoco dizer que foi um retrocesso. Mas afinal, de que forma isso ocorre e o que pode ser feito a respeito? Primeiro, cabe uma breve consideração acerca do que seria uma portaria.
No ordenamento brasileiro, nem todas as regras aplicáveis às diversas situações reguladas pelo direito são provenientes de lei. Por exemplo, a lei penal define que é crime o tráfico de drogas, mas é uma portaria da Anvisa que define quais substâncias se enquadram nessa categoria. Assim, existem variadas formas de “derrubar” a portaria, inclusive judiciais. Cabível neste ponto citar a atuação de órgãos internacionais de proteção ao trabalho e aos direitos humanos, além de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil.
Na prática, o Ministério do Trabalho tornou mais difícil sua caracterização, na medida em que exige que o trabalhador esteja submisso mediante ameaça e clara coação. Não se poderia levar mais em conta, por exemplo, jornada exaustiva, condições degradantes ou restrição de locomoção por razão de dívida. Esta última, por sinal, é a principal forma de escravização nos dias atuais, o que torna o cenário preocupante.
A reivindicação atendida pela polêmica portaria atende principalmente os interesses da bancada ruralista no Congresso, setor no qual se sabe ocorre a maior parte do trabalho escravo, embora também existam casos no meio urbano. Em áreas em que a fiscalização é precária, tornar mais difícil ainda a constatação de trabalho escravo pode significar a impunidade para muitos produtores e empreendedores desse meio, além de impossibilitar a efetiva ajuda às pessoas que se encontram nessa condição.
Felizmente, ao que tudo indica, a medida causou controvérsia dentro do próprio governo. Tanto é assim que dentro do próprio Ministério do Trabalho há quem critique a medida, como é o caso do secretário de Inspeção da pasta, que detectou o que considera falhas “técnicas” e “jurídicas”. O Ministério Público do Trabalho, que é um órgão independente do governo como um todo, orientou todos os seus integrantes a seguir a legislação anterior e ao Ministério do Trabalho que revogue a portaria.
De outro lado, numa era em que as redes sociais dominam o cotidiano das pessoas, permitindo que mais pessoas tenham acesso à informação e especialmente pressionem os parlamentares de forma muito mais efetiva, é bastante possível que dada a locomoção causada, em breve a portaria seja de fato revogada ou de alguma forma superada com base em uma nova interpretação das autoridades.
Seja como for, além do conhecimento acerca do conteúdo de medidas como a portaria em comento, é relevante ao cidadão que saiba minimamente de que forma ela foi editada e quais os remédios judiciais e administrativos cabíveis.
Alexandre Rimoli Esteves é advogado formado pela USP e atua em Mogi Mirim nas áreas de direito civil, empresarial e de família.