No Brasil, o passado é sempre revisitado. E com direito a reviver hábitos, mesmo os pérfidos. É o caso do coronelismo dos anos 1930, do ciclo agrícola, que castigava o livre exercício dos direitos políticos. Os velhos coronéis da Primeira República (1889-1930) consideravam os eleitores como súditos, não como cidadãos. Criavam feudos dentro do Estado.
Agora, neste país urbano, principalmente em alguns recantos, as autoridades precisam pedir licença para subir morros. O próprio ex-ministro da Defesa, general Braga Netto, que acaba de deixar o Ministério para se habilitar a ser vice na chapa de Bolsonaro, já chefiou tropas no RJ com o fito de dominar o império miliciano. Pouco conseguiu. Neste ano, a polarização política deve incrementar essa modalidade eleitoral.
Em plena segunda década do século XXI, vivemos tempos de um novo coronelismo. Desta feita, até parece que os nossos governantes aprovam a corrente neocoronelista. Para recordar, o voto de cabresto, prática fraudulenta dos tempos da velha República, transfere-se ao domínio de comandantes de milícias, personagens da urbe violenta que se valem da insegurança para implantar o medo.
Nos últimos 70 anos, a população urbana cresceu, no país, de 30% para 80%, agigantando cidades, expandindo demandas, e propiciando a continuação de vícios, dentre eles o voto por encomenda. É verdade que mudanças sociais e políticas, a partir das décadas de 1930 e 1940, contribuíram para melhorar a participação do povo no processo eleitoral.
A concentração de forças permanece sob a égide do Estado todo-poderoso, bem duro na função de cobrador de impostos, eixo repressor, distribuidor de favores e com poder de definir os destinos da sociedade. O corolário deste modelo se expressa no conceito de “estadania” em contraposição à “cidadania”, cultura orientada para o Estado e não para a representação política. O brasileiro continua a ser um “cidadão menor” e, sob esta perspectiva, podemos compreender as causas para o ressurgimento de novos coronéis da política, como os quadrilheiros urbanos.
Esse “cidadão precário” integra o maior contingente nacional, sendo a grande maioria dos 150 milhões de eleitores apta a votar. Ontem, o coronel rural entregava o voto fechado no envelope para o súdito depositar na urna, sem lhe dar o direito de saber em quem estava votando: “O voto é secreto”. Hoje, o coronel miliciano e o chefe da gangue prometem conferir votos dados a seus candidatos. Pior: o comandante em chefe da Nação questiona a urna eletrônica, enxergando nela motivos de fraude.
Não será de admirar se uma nova prática for adotada nas eleições de outubro: o roubo de urnas eletrônicas para driblar o processo eleitoral.
*Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político