É fatal: basta chegar esta época em que as festas de fim de ano estão aí, para que algumas pessoas vazem sentimentos que as afligem. Experimentei isso mais de uma vez. Como há muitos anos, na época em que morava em Sampa, ao encontrar Jocádio, velho amigo, num barzinho perto do supermercado do nosso então bairro. De repente, entre um gole e outro, ele expôs o nem tão vago sentimento que o corroía; embutido, aliás, conforme fez questão de frisar, em certa contradição.
– Sabe? – apertou meu braço, ao falar – O que me aflige nesta época?
Como eu encolhesse os ombros, ele primeiro deu uma bicada na taça de vinho; depois, a olhar para um lado e outro como se temesse ser ouvido, confidenciou: – É que nos dias que antecedem o Natal sinto enorme, quase incontrolável saudade da minha ex-mulher.
Diante da declaração que até capitulei como algo dramático, optei pelo óbvio, ao sugerir: – Ué, e por que você não bate um fio para ela?
– Você tá louco, meu? A Nacária não quer me ver nem pintado de verde e amarelo. Vai desligar o fone na minha fuça!
Como eu desconhecia os detalhes da separação, fiz cara de paisagem. O angustiado, no entanto, continuou detalhando que a antiga consorte exalava por ele uma dessas antipatias transcendentais como se não tivesse, durante bom par de anos, dividido com o queixoso, até com certo deleite, o mesmo leito.
– Sabe o que ela fez para marcar a porretada fatal em nosso relacionamento? Como não teve coragem, mandou a irmã me escrever um bilhete me chamando de filho disto e filho daquilo; insinuando também que, se me avistasse na rua, passaria, imediatamente, para a outra calçada. Fiquei arrasado.
Até para ajudar Jocádio a melhor narrar seu sofrimento, indaguei: – Mas por que você só sente saudades da moça nesta época?
– Por causa da ceia de Natal, meu caro. O jantar que ela preparava era algo tão absolutamente divino que, ao se espalhar pelas ruas do bairro o aroma que a iguaria deixava sair do forno, até os passarinhos paravam de cantar; vinham para o beiral da casa vizinha a fim de admirar Nacária em ação, sabia? Só ela sabia manipular temperos que iam de infusões das alquimias culinárias de Brillat Savarin a ervas colhidas no Paraíso Terrestre…
Não sei se tomado pela emoção do camarada, me pareceu que furtivas lágrimas se haviam plantado nos cantos dos seus olhos ao continuar, com a voz embargada: – Ela pilotava o fogão saboreando taças de vinho e cantarolava acompanhando Frank Sinatra ou Nat King Cole a derramar baladas no som colocado na copa.
Devo confessar que, talvez até embalado pelo bom cabernet que também sorvia, me vi tomado por ampla solidariedade com a angústia que a narrativa trazia nas entrelinhas. Consegui, então, captar algo que foi dito no começo do papo: – Você falou que tua saudade natalina estava embutida num contexto de contradição. Qual, posso saber?
– Sim, claro – ele parecia catar as palavras – é que, também nesta época, ocorre a única ocasião em que quase chego a detestar minha nova mulher que, como você sabe, eu amo de paixão.
– Como assim? – Ergo as sobrancelhas.
– Muito simples – Jocádio segue – é por causa do peru. Meu Deus, não dá para imaginar como é ruim a nobre ave que a Saviona prepara para a nossa ceia. É o único dia do ano em que ela vai para a cozinha, justamente a fim de materializar a tragédia. Enquanto com a “ex” os passarinhos paravam de cantar para vê-la em ação, com a atual eles somem do quintal e até do bairro mal se espalha o aroma da gororoba medonha.
– Mas você come, não é?
– Claro, e até elogio como se fosse um manjar dos céus.
Nisso Saviona, mais a empregada que fora com ela ao supermercado, se aproxima da mesa para informar que as compras já estavam no carro no estacionamento.
– Comprou o nosso divino peru? – Jocádio pergunta.
– Claro, querido, você acha que eu ia esquecer o prato natalino que você mais adora?
Logo depois se foram. E, enquanto se afastavam, não pude deixar de pensar que a esposa do meu amigo é tão maravilhosa, tão gritantemente linda, que, feito por ela, ele deveria comer rezando até mesmo algum pão que o diabo, em pessoa, tivesse por acaso ajudado a amassar…
Antonio Contente é jornalista e escritor